PESQUISA APROFUNDADA:
Salvaguarda, Memória e Identidade Cultural no Sul da Bahia.
Autor e Pesquisador: Cristiano Dos Santos Rocha (Instrutor Alemão).
Data de Elaboração: Novembro de 2025.
São Paulo/SP.
PRÉVIA EMVIDEO:
Sumário:
I. A Dialética do Cacau e do Berimbau: O Contexto Sociocultural
1.1. Contexto Sociocultural da Capoeira Grapiúna
1.2. A Linhagem de "Sangue Azul": Genealogia da Técnica
II. O Patriarca e a Pedagogia da Inclusão: A Era de Mestre Vovô (1997-2013)
2.1. A Gênese na Urbis IV: O Quilombo Urbano.
2.2. A Pedagogia da Inclusão Radical.
2.3. O Falecimento e a Mitificação.
III. A Institucionalização da Memória: A Escola de Capoeira Casa do Vovô.
3.1. A Fundação Jurídica e o Colegiado de Herdeiros.
3.2. Estratégia Geográfica: Matriz, Sede e Expansão.
IV. O Mestre da Nova Era: A Ascensão de Carlos Zoião (1997-2025).
4.1. Cronologia de uma Consagração.
4.2. O 4º Festival e a Formatura de Mestre (Novembro 2025).
4.3. O Mestre-Educador e Artesão.
V. O Colegiado de Guardiões: Mestres e Contramestres.
5.1. Contramestre Geovane Karuru: O Mestre-Gestor.
5.2. Contramestre José Carlos (Gué): O Embaixador Internacional.
5.3. Contramestre William Cruz: A Articulação Política.
5.4. Contramestre Thiago Zoreba: O Provedor da Cultura.
5.5. Contramestre Renato Pica-Pau: O Educador da Rede Pública.
5.6. A Diáspora e a Expansão da Linhagem:
VI. Capoeira como Política Pública: Leis, Editais e Sustentabilidade.
6.1. A Lei Moa do Katendê e o Projeto "Capoeira nas Escolas".
6.2. Lei Paulo Gustavo e o EP "Na Casa do Vovô tem dendê".
6.3. Lei Aldir Blanc (PNAB) e Fomento a Eventos.
VII. Produção Cultural e Identidade: O Repertório da Casa.
VIII. Considerações Finais: A Salvaguarda Viva.
IX. Menção Honrosa ao Criador da Pesquisa.
X. Referências Bibliográficas e Documentais.
I. A Dialética do Cacau e do Berimbau: O Contexto Sociocultural da Capoeira Grapiúna.
A compreensão profunda da Escola de Capoeira Casa do Vovô exige, preliminarmente, uma imersão na geografia humana e histórica de Itabuna, município situado no Sul da Bahia. Esta região, historicamente moldada pela monocultura cacaueira, desenvolveu uma estrutura social peculiar onde a riqueza da elite agrária contrastava com a marginalização das classes trabalhadoras, majoritariamente negras. É neste interstício de tensão social e resistência cultural que a capoeira grapiúna floresce, não apenas como uma manifestação lúdica, mas como uma tecnologia social de sobrevivência e afirmação identitária.
Itabuna, frequentemente referida como a "capital do cacau", carrega em sua história a dualidade de ter sido estigmatizada como a "cidade dos capoeiras" em meados do século XX — um termo pejorativo associado à desordem e à violência de rua — para se transformar, na contemporaneidade, em um polo exportador de mestres de renome internacional. A trajetória da capoeira na cidade é um microcosmo da luta pela cidadania no Brasil: da perseguição policial à institucionalização como Patrimônio Cultural Imaterial, sancionado pela Lei Municipal nº 2.065 em outubro de 2022.
A Escola de Capoeira Casa do Vovô, fundada formalmente em 2016 mas gestada desde 1997 nas ruas do bairro Urbis IV, é a herdeira direta e a protagonista atual desse processo histórico. Ela representa a síntese entre a tradição oral — transmitida nas rodas de rua e nos barracões — e a modernidade burocrática necessária para a sobrevivência cultural no século XXI, navegando com destreza entre a ancestralidade do berimbau e a linguagem técnica dos editais de fomento governamental. A escola não é apenas um centro de treinamento físico; é um "território de identidade", onde a memória de seu fundador, Mestre Vovô, atua como o cimento ético que une uma comunidade dispersa entre a periferia e o centro, entre a Bahia e o mundo.
A relevância deste estudo reside na análise de como uma instituição de base comunitária, nascida em um conjunto habitacional periférico (Urbis IV), conseguiu transcender as barreiras da exclusão socioeconômica para se estabelecer como uma entidade de referência no "Cadastro Nacional de Capoeiristas" do IPHAN e na rede de Pontos de Cultura. A análise detalhada dos documentos fornecidos revela uma organização que opera em múltiplos níveis: pedagógico (formação de cidadãos), artístico (produção fonográfica e espetáculos), político (articulação da Lei Moa do Katendê) e espiritual (preservação do axé e da linhagem).
1.1. A Linhagem de "Sangue Azul": A Genealogia da Técnica e do Prestígio.
A legitimidade no universo da capoeira é estritamente genealógica; o "axé" (força vital) é transmitido de mestre para discípulo em uma cadeia ininterrupta. A Casa do Vovô ostenta uma linhagem que a conecta diretamente aos troncos mais nobres da capoeira baiana contemporânea, conferindo-lhe uma autoridade técnica e histórica inquestionável. A árvore genealógica da escola revela uma "tríade de influências" que moldou sua identidade híbrida, combinando a malícia da rua com o rigor da academia.
A Casa do Vovô, um grupo ligado a Mestre Suassuna, revolucionário da capoeira com o "Miudinho", teve sua "capoeira de raiz" de Itabuna reconhecida nos festivais "Capoeirando" (2004 e 2008) por ele organizados. Esse reconhecimento validou e elevou a autoestima dos praticantes da periferia de Itabuna.II. O Patriarca e a Pedagogia da Inclusão: A Era de Mestre Vovô (1997-2013)
2.1. A Gênese na Urbis IV: O Quilombo Urbano.
A história da Casa do Vovô começa, efetivamente, em 19 de outubro de 1997, data que marca tanto o início do projeto social na Urbis IV quanto a iniciação de seu discípulo mais proeminente, Carlos Zoião. A escolha do bairro Urbis IV não foi aleatória. Trata-se de um conjunto habitacional popular, historicamente carente de aparelhos culturais estatais. Mestre Vovô, com uma visão que transcendia o esporte, identificou ali um território fértil para a implementação de sua "missão de vida".
O projeto na Urbis IV funcionava como um "quilombo urbano" moderno. Em um contexto onde jovens da periferia eram frequentemente cooptados pela criminalidade ou marginalizados pelo desemprego, a roda de capoeira de Mestre Vovô oferecia um espaço de pertencimento, disciplina e dignidade. O objetivo explícito era "tirar os meninos da rua", mas a metodologia ia além do assistencialismo. Vovô utilizava a capoeira para reestruturar a identidade de seus alunos, exigindo comprovante de matrícula escolar e bom comportamento familiar como pré-requisitos para o treino e a graduação.
2.2. A Pedagogia da Inclusão Radical.
A maior inovação de Mestre Vovô, e talvez seu legado mais duradouro, foi a implementação de uma "Pedagogia da Inclusão Radical". Diferente de academias que focavam na performance atlética e excluíam os corpos "inaptos", Vovô acolhia a todos. Os registros documentais destacam, de forma comovente, seu trabalho pioneiro com crianças e jovens portadores de deficiências.
Para Mestre Vovô, a roda de capoeira era um microcosmo da sociedade ideal: um círculo onde todos são iguais, onde o respeito é mandatório e onde cada um joga conforme sua capacidade, mas todos participam da energia coletiva. A integração de pessoas com deficiência não era feita de forma segregada, mas plena; elas participavam dos batizados, das rodas e das apresentações folclóricas, vestindo o mesmo uniforme e recebendo a mesma graduação simbólica. Essa prática antecipou em décadas as políticas públicas de inclusão que hoje são exigidas por lei, demonstrando a vanguarda humanista da capoeira grapiúna.
2.3. O Falecimento e a Mitificação.
O falecimento de Antônio Neviton dos Santos em 05 de abril de 2013 foi um evento sísmico para a comunidade da capoeira em Itabuna. A morte de um Mestre carismático frequentemente leva à fragmentação de seu grupo, com discípulos disputando a herança ou dispersando-se. No entanto, o luto transformou-se em combustível para a união.
A homenagem póstuma realizada em setembro de 2013, durante um grande batizado do Grupo Raça, serviu como o rito de passagem que elevou Vovô da condição de professor para a de ancestral. A presença de mestres de vários estados e países, neste evento atestou a magnitude de sua influência. A partir deste momento, a figura de "Mestre Vovô (in memoriam)" tornou-se o eixo espiritual em torno do qual seus alunos — agora órfãos de pai, mas herdeiros de um reino cultural — começaram a se reorganizar. A fundação da escola com seu nome, três anos depois, foi a materialização do compromisso de "não deixar a peteca cair", ou melhor, não deixar o berimbau calar.
III. A Institucionalização da Memória:A Escola de Capoeira Casa do Vovô.
3.1. A Fundação Jurídica e o Colegiado de Herdeiros.
Em 30 de maio de 2016, o legado informal de Mestre Vovô ganhou personalidade jurídica e estrutura institucional com a fundação oficial da Escola de Capoeira Casa do Vovô. Este ato não foi uma iniciativa individual, mas coletiva, liderada por um "colegiado de herdeiros" que compreendiam a necessidade de profissionalizar a gestão do grupo para garantir sua sobrevivência.
Os fundadores registrados no IPHAN e nos estatutos da escola são os discípulos diretos que acompanharam Vovô desde os tempos difíceis da Urbis IV: José Carlos (Gué), Carlos (Zoião), Geovane (Karuru), Thiago (Zoreba), William, Wilde, Alessandro e Renato (Pica-Pau). Esta governança compartilhada é um traço distintivo da escola. Ao contrário do modelo caudilhista comum na capoeira, onde um único mestre detém todo o poder, a Casa do Vovô opera com uma liderança distribuída, onde cada contramestre (e agora Mestre) assume a responsabilidade por um pilar específico da manutenção da escola, seja ele pedagógico, burocrático, artístico ou político.
3.2. A Estratégia Geográfica: Do Bairro ao Centro, de Itabuna ao Mundo.
A análise espacial da atuação da Casa do Vovô revela uma estratégia de ocupação territorial inteligente, que busca equilibrar a fidelidade às origens com a necessidade de expansão e visibilidade. Podemos identificar três polos geográficos distintos e complementares na operação da escola:
3.2.1. A Matriz Sagrada: Urbis IV (O Polo da Memória).
A sede original na Urbis IV (Rua Caminho 17, nº 11, Bairro Sinval Palmeira) permanece como o coração espiritual da escola. É o "solo sagrado" onde o umbigo do grupo está enterrado. A manutenção das atividades neste local é uma declaração política: a escola cresceu, profissionalizou-se, mas não abandonou a comunidade que a gestou.
O Calendário de Maio: Os eventos realizados neste núcleo concentram-se tradicionalmente no mês de maio, coincidindo com o aniversário de fundação da escola (30/05) e o aniversário de Mestre Zoião (19/05). Estes eventos, muitas vezes batizados de "Eu Vou Lá na Casa do Vovô", têm um caráter intimista, de reafirmação de laços comunitários e homenagem à memória do fundador.
3.2.2. A Sede Central: Centro de Itabuna (O Polo da Visibilidade).
Reconhecendo que a periferia muitas vezes sofre com a invisibilidade perante a elite econômica e política, a escola inaugurou, em 2021, uma sede no Centro de Itabuna (Rua Professor Alício de Queiroz, nº 210, 1º andar). Esta mudança geográfica foi crucial para a profissionalização.
O Calendário de Novembro: O núcleo central é o palco dos grandes eventos de novembro, o Mês da Consciência Negra. É aqui, e no vizinho Centro de Cultura Adonias Filho, que ocorrem os grandes festivais, as formaturas de gala e os lançamentos de produtos culturais. A ocupação do centro da cidade simboliza a reivindicação da capoeira como cultura de elite intelectual e artística, rompendo o gueto geográfico.
3.2.3. O Eixo de Expansão: Feira de Santana (O Polo Político).
A atuação do Contramestre William Cruz em Feira de Santana estabeleceu um modelo de expansão "Hub and Spoke" (Eixo e Raios). Enquanto Itabuna mantém a ortodoxia e a tradição (o Eixo), Feira de Santana funciona como um laboratório de articulação política e expansão de mercado (o Raio). William atua como um embaixador da escola na segunda maior cidade da Bahia, participando de fóruns de políticas públicas e ampliando a influência da linhagem da Casa do Vovô para além da região cacaueira.
IV. O Mestre da Nova Era: A Ascensão de Carlos Zoião (1997-2025).
A narrativa da Casa do Vovô na última década confunde-se intrinsecamente com a biografia e a jornada artística de Carlos Martins Coelho Souza, universalmente reconhecido como o Mestre Carlos Zoião. Sua ascensão à liderança e sua dedicação inabalável à preservação e evolução dos pilares culturais da instituição não são meros detalhes, mas o próprio fio condutor que costura a rica herança de Mestre Vovô ao presente robusto e institucionalizado da Casa.
A trajetória de Mestre Carlos Zoião, detalhada minuciosamente nos vastos e rigorosos relatórios técnicos e documentos de gestão da Casa, serve como o elo de transição. Esses documentos não apenas registram sua cronologia de trabalho, mas atestam a forma como ele absorveu os ensinamentos, técnicas e a filosofia de seu predecessor, transformando essa base em uma estrutura administrativa e artística sustentável. Ele não apenas manteve viva a chama do legado; ele a potencializou, adaptando as práticas tradicionais às exigências contemporâneas, garantindo a perenidade da Casa como um centro de excelência cultural e social. O detalhamento em relatórios ressalta a transparência e a seriedade com que a gestão dessa herança cultural tem sido conduzida sob sua égide.
4.1. Cronologia de uma Consagração.
Zoião não herdou a liderança; ele a construiu tijolo por tijolo, corda por corda. Sua progressão hierárquica é um testemunho da rigidez e seriedade com que a escola trata a formação de seus quadros:
1997 (19 de Outubro): Iniciação na capoeira com Mestre Vovô na Urbis IV, aos 20 anos.
2002: Graduação como Monitor. Início da docência comunitária, auxiliando o mestre.
2004: Graduação como Instrutor. Expansão para o ensino em escolas particulares, iniciando a profissionalização financeira.
2005: Formatura como Aluno Formado.
2010: Início do ofício de artesão (confecção de berimbaus e atabaques), garantindo a autonomia material da escola.
2015: Graduação a Professor Formado (Pós-Vovô), validada pelos Mestres Medicina e Magrelo, garantindo a legitimidade da sucessão.
2019: Contramestre 1º Grau.
2023: Contramestre 2º Grau.
2025 (19 de Novembro): Consagração como Mestre de Capoeira.
4.2. O 4º Festival e a Formatura de Mestre (Novembro de 2025).
O ano de 2025 marcou o ápice da trajetória de Zoião e da própria escola. O 4º Festival da Escola de Capoeira Casa do Vovô, realizado entre 17 e 21 de novembro, foi mais do que um evento esportivo; foi um ato político-cultural de grande envergadura, financiado pela Lei Aldir Blanc (PNAB) e apoiado pela FICC (Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania).
A análise detalhada da programação deste festival revela a sofisticação da proposta pedagógica da escola:
Inclusão (Dia 17/11): A abertura contou com uma "Oficina de Libras" ministrada por Roberta Brandão e a exibição do minidocumentário "A capoeira e o corpóreo visual". Isso demonstra que a escola não apenas fala de inclusão, mas instrumentaliza seus alunos para se comunicarem com a comunidade surda, uma vanguarda na pedagogia da capoeira.
Musicalidade (Dia 17/11 e 21/11): Oficinas com Mestre Minduim e Mither Amorim reforçaram a centralidade da música. A oficina "Musicalização Brincante" aponta para uma ludicidade pedagógica essencial para o ensino infantil.
O Rito de Passagem (Dia 19/11): No Centro de Cultura Adonias Filho, ocorreu o 17º Batizado e Troca de Cordéis. Foi neste palco que Carlos Zoião recebeu a graduação máxima de Mestre, chancelada por mestres renomados como Mestre Risadinha (Joilson). Este momento, descrito nos documentos como uma "surpresa histórica e inesquecível", solidificou sua autoridade como o guardião principal da linhagem. A presença de Risadinha, que consta no cadastro do IPHAN como o mestre que concedeu a graduação, legitima o título perante a comunidade nacional da capoeira.
4.3. O Mestre-Educador e Artesão.
Além da liderança política, Zoião destaca-se por duas facetas complementares:
O Acadêmico: Cursando o 7º semestre de Licenciatura em Educação Física, ele busca traduzir o saber empírico da capoeira para a linguagem acadêmica, qualificando-se para atuar como professor na rede formal de ensino e dialogar de igual para igual com as secretarias de educação.
O Artesão: Desde 2010, Zoião domina a tecnologia de produção dos instrumentos (berimbaus, caxixis, atabaques). Isso não é apenas uma habilidade manual, mas uma estratégia de soberania. A escola não depende de fornecedores externos para os seus "armamentos" sagrados; ela produz seu próprio som.
V. O Colegiado de Guardiões: Mestres e Contramestres.
A força da Casa do Vovô reside na sua liderança policêntrica. Além de Mestre Zoião, a escola é sustentada por um corpo de contramestres de altíssima competência, cada um com uma especialização funcional que enriquece o coletivo.
5.1. Contramestre Geovane Karuru: O Mestre-Gestor.
Geovane Cordeiro do Rosário (Karuru) é a mente administrativa por trás do sucesso institucional da escola. Com formação superior em Gestão do Agronegócio, ele trouxe para a capoeira o letramento burocrático necessário para acessar os complexos editais de cultura.
A Interface Acadêmica: Karuru é o elo entre a Casa do Vovô e a academia. Sua atuação facilitou parcerias com a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), como evidenciado na participação da escola no projeto de extensão "Coletivo AFRO(en)CENA" e na tese de doutorado "Pedagogia da Circularidade Afrocênica". Essa colaboração elevou a capoeira da escola à categoria de objeto de pesquisa científica, validando seus saberes ancestrais no ambiente universitário.
5.2. Contramestre José Carlos (Gué): O Embaixador Internacional e Filósofo.
José Carlos Silva Nascimento (Gué) é o vetor da expansão global e profundidade teórica. Sua trajetória é marcada pela internacionalização da marca "Casa do Vovô", com missões culturais realizadas no Chile, Argentina, Turquia, França e Espanha.
O "Cazua": Gué idealizou e lidera o projeto "Cazua na Roça", um espaço-ateliê dedicado à confecção de instrumentos e à convivência comunitária. O "Cazua" funciona como um laboratório de preservação da cultura material da capoeira, onde o ato de construir um berimbau é ensinado como um ritual de conexão com a natureza e a ancestralidade.
Filosofia do Movimento: Gué defende a tese de que o capoeirista deve ser um "pesquisador". Sua pedagogia enfatiza a "mandinga" (malícia) e o "jogo de corpo" inteligente, integrando o Samba de Roda como parte indissociável do treinamento marcial.
5.3. Contramestre William Cruz: A Articulação Política.
William Cruz opera a base de Feira de Santana como articulador político. Ele insere a Casa do Vovô nos debates estaduais sobre a regulamentação da profissão de capoeirista e políticas públicas, garantindo sua voz ativa nas decisões estaduais que afetam a classe.
5.4. Contramestre Thiago Zoreba: O Provedor da Cultura.
Thiago Santos Costa (Zoreba) é o guardião das tradições folclóricas. Desde 2004, antes mesmo de sua formatura, ele já integrava o corpo de baile da escola. Sua especialidade é o ensino e a performance de Maculelê, Puxada de Rede e Dança do Fogo. Zoreba garante que a escola mantenha sua característica de "companhia cultural", capaz de realizar espetáculos cênicos complexos que encantam o público e preservam a memória das manifestações populares do recôncavo e do sul da Bahia.
5.5. Contramestre Renato Pica-Pau: O Educador da Rede Pública.
Renato de Jesus Pereira (Pica-Pau) é a ponta de lança da escola na educação formal. Atuando como professor em escolas estaduais como o Colégio Estadual Inácio Tosta Filho, ele operacionaliza a Lei 10.639/03 (que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira) no chão da sala de aula. Pica-Pau traduz a linguagem da roda para a linguagem curricular, provando que a capoeira é uma ferramenta pedagógica eficaz para o desenvolvimento motor, cognitivo e social de crianças e adolescentes.
5.6. A Diáspora e a Expansão da Linhagem:
O legado de Mestre Vovô não se restringiu aos limites geográficos da Bahia. A solidez de sua formação permitiu que seus discípulos expandissem a metodologia da Casa do Vovô para grandes centros urbanos, estabelecendo uma "diáspora organizada" que mantém viva a conexão com a matriz em Itabuna.
5.6.1. A Embaixada em São Paulo: Contramestre Cabelo Pé de Serra.
George Silva De Oliveira (Contramestre Cabelo Pé de Serra) representa a ponte vital entre o Nordeste e o Sudeste. Sua migração para São Paulo não foi um abandono das raízes, mas uma expansão estratégica.
Identidade de Resistência: O apelido "Pé de Serra" é uma afirmação política de sua origem nordestina e da autenticidade de sua capoeira em meio ao ambiente cosmopolita paulistano.
Linhagem Híbrida: Em São Paulo, Cabelo integrou-se à linhagem do Mestre Cobrinha da Praça da República (Organização Onças). Essa fusão permitiu-lhe unir a malícia da "capoeira de raiz" de Itabuna com a exigência técnica e a "capoeira de briga de guerra" tradicional da Praça da República.
Atuação Social: Reproduzindo o modelo de Mestre Vovô, Cabelo estabeleceu sua base em áreas periféricas da Zona Leste de São Paulo (Cidade Tiradentes e Itaquera). Ele lidera a Roda de Rua no Terminal Tiradentes, transformando um espaço de trânsito em um polo de cultura e resistência.
5.6.2. O Retorno Genealógico: Mestre Pavarotti.
José Carlos Santana dos Santos (Mestre Pavarotti) protagonizou uma jornada singular de "retorno às origens". Iniciado por Mestre Vovô no Grupo Raça, ele posteriormente filiou-se ao Grupo Cordão de Ouro, fundado por Mestre Suassuna (também nativo de Itabuna).
Consagração: Em 2024, Pavarotti recebeu a graduação de Mestre das mãos do próprio Mestre Suassuna. Este ato simbólico fechou um "círculo genealógico", reconectando a linhagem de Vovô (que vinha de Medicina e Suassuna) diretamente à sua fonte original.
Liderança Internacional: Pavarotti lidera o núcleo "Expressão Grapiúna" e, após o falecimento de Mestre Garrote em 2025, assumiu a supervisão técnica de núcleos na Bolívia (La Paz e Trinidad), expandindo a influência itabunense para a América Andina.
5.6.3. O Agente de Salvaguarda: Instrutor Alemão (Cristiano).
Cristiano Dos Santos Rocha (Instrutor Alemão) desempenha um papel técnico crucial na diáspora. Radicado em Guarulhos/Itaquera (SP) e supervisionado por Contramestre Cabelo Pé de Serra, ele atua como um "Secretário de Salvaguarda".
Capital Burocrático: Diferente da atuação puramente física, Alemão foca na documentação e na conversão do saber tradicional em "capital burocrático". Ele é o responsável pela elaboração de dossiês técnicos (como este) que garantem o registro histórico e a elegibilidade da escola e de seus mestres em editais de fomento nacionais. Sua atuação conecta a ponta da lança em SP com a gestão central da Casa do Vovô na Bahia (Mestre Zoião e Contramestre Gué).
VI. Capoeira como Política Pública: Leis, Editais e Sustentabilidade.
A sobrevivência e o crescimento da Casa do Vovô, nesse complexo cenário cultural, dependem de sua proatividade e capacidade de dialogar com o Estado e utilizar as políticas públicas de cultura. A instituição, dedicada à cultura, não só se manteve relevante, mas se consolidou como um "case" de sucesso na gestão e utilização dos mecanismos legais de fomento, demonstrando a sustentabilidade de projetos culturais de longo prazo.sucesso a longo prazo da Casa do Vovô, além de paixão e dedicação, exige conhecimento legislativo, elaboração de projetos conforme editais e gestão transparente de recursos. A instituição se sobressai ao usar a burocracia para potencializar suas atividades, garantindo não só a manutenção, mas também a expansão de seu impacto social e cultural.
6.1. A Lei Moa do Katendê e o Projeto "Capoeira nas Escolas".
A Lei nº 14.341/2021 (Lei Moa do Katendê), sancionada pelo Governo da Bahia, instituiu a salvaguarda da capoeira e determinou sua inserção nas escolas públicas. A Casa do Vovô posicionou-se na vanguarda da implementação desta lei em Itabuna.
Certificação: Mestres e instrutores da escola participaram do programa "Qualifica Capoeira", uma iniciativa do governo estadual para certificar pedagogicamente os capoeiristas para atuarem nas escolas. O evento de certificação em Itabuna e Ilhéus, realizado em agosto de 2025, contou com a presença de membros da escola, legitimando-os como educadores aptos para a rede pública.
Atuação: Através deste marco legal, a escola formalizou sua presença em instituições de ensino, transformando a capoeira de atividade extracurricular voluntária em componente curricular remunerado e estruturado.
6.2. Lei Paulo Gustavo e o EP "Na Casa do Vovô tem dendê".
A escola utilizou a Lei Paulo Gustavo (Edital Vozes Culturais da Bahia) para financiar um projeto de preservação imaterial de suma importância: o EP (Extended Play) "Na Casa do Vovô tem dendê".
O Projeto: Classificado com a alta pontuação de 98 pontos na cota para pessoas negras, o projeto visou o registro fonográfico das músicas autorais da escola.
Lançamento: O EP foi lançado oficialmente em 13 de novembro de 2024 no Centro de Cultura Adonias Filho. Ele contém 6 faixas compostas pelos mestres, perpetuando as ladainhas e corridos que narram a saga do grupo. A produção contou com a expertise de Mither Amorim, unindo a tradição oral à qualidade técnica de estúdio. Este produto cultural serve não apenas como registro histórico, mas como material didático para as aulas de musicalidade.
6.3. Lei Aldir Blanc (PNAB) e Fomento a Eventos.
A Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) foi outra fonte crucial de recursos. A escola aprovou projetos para a realização de seus festivais, incluindo o 4º Festival da Escola de Capoeira Casa do Vovô (2025). Documentos indicam que o projeto do festival obteve uma pontuação de 71.33, ficando como suplente classificado e eventualmente executado com apoio da FICC. Além disso, Mestre Zoião foi contemplado com o Prêmio Cultura Viva e a premiação por trajetória cultural, reconhecimentos financeiros que injetam capital direto na manutenção da instituição.
VII. Produção Cultural e Identidade: O Repertório da Casa.
A Casa do Vovô define-se como uma escola de "cultura popular", não apenas de luta. O repertório ensinado e performado é vasto:
Maculelê: Uma das manifestações culturais afro-brasileiras mais vibrantes e ricas, o Maculelê é ensinado no grupo com um foco especial na dança dramática. Ela é executada com a percussão de bastões (chamados de grimas) ou, em versões mais intensas, com facões, que são batidos em um ritmo contagiante e rigoroso. O grupo utiliza a prática constante do Maculelê como uma ferramenta essencial para o desenvolvimento integral dos alunos. Por meio dos movimentos coreografados e da batida coordenada dos instrumentos, é possível aprimorar significativamente a coordenação motora fina e grossa, o ritmo e a agilidade. Além disso, a natureza teatral da dança — que muitas vezes representa a luta, a colheita ou rituais ancestrais — é fundamental para trabalhar a expressividade cênica, a presença de palco e a capacidade dos alunos de transmitir emoção e narrativa através do movimento. O Maculelê, portanto, transcende a simples dança, tornando-se uma poderosa disciplina de corpo e arte.
Puxada de Rede: Uma encenação teatral da pesca do xaréu, tradicional do litoral baiano. Esta manifestação é usada para ensinar sobre o trabalho coletivo e a relação do homem com o mar, conectando os alunos de Itabuna (cidade interiorana, mas próxima a Ilhéus) com a cultura costeira.
Samba de Roda: Reconhecido como Patrimônio da Humanidade, o samba de roda é praticado ao final dos treinos como forma de confraternização e descompressão. É o momento onde a hierarquia rígida da capoeira se dilui na alegria da dança.
Musicalidade e Artesanato: A confecção de instrumentos é parte do currículo. O ateliê de Mestre Zoião e o "Cazua" de Contramestre Gué são centros de produção onde se ensina a escolher a verga do berimbau, preparar a cabaça e encordoar o arame. Isso cria nos alunos um senso de propriedade e respeito pelo instrumento sagrado da capoeira.
VIII. Considerações Finais: A Salvaguarda Viva.
A pesquisa aprofundada sobre a Escola de Capoeira Casa do Vovô revela uma instituição que transcendeu a função de academia de esportes para se tornar um pilar da identidade cultural do Sul da Bahia. Em um período de menos de 30 anos (1997-2025), o grupo evoluiu de um projeto social em um bairro estigmatizado para uma entidade premiada, com sede no centro da cidade, braços internacionais e reconhecimento acadêmico e governamental.
A chave para esse sucesso reside na capacidade da escola de honrar o passado sem ficar presa a ele. A memória de Mestre Vovô não é um peso, mas uma bússola. Seus herdeiros, liderados agora pelo Mestre Carlos Zoião, souberam profissionalizar a gestão, qualificar-se academicamente e ocupar os espaços políticos (conselhos de cultura, editais, universidades) que historicamente foram negados aos capoeiristas.
A Casa do Vovô exemplifica o conceito moderno de salvaguarda do patrimônio imaterial: não se trata de congelar a tradição em um museu, mas de mantê-la viva, pulsante e economicamente viável, garantindo que o berimbau continue a tocar, que as crianças (com ou sem deficiência) continuem a gingar, e que a história de resistência do povo negro de Itabuna continue a ser contada e cantada para as próximas gerações. "Venha ver, venha ver, na Casa do Vovô tem dendê" — mais do que um refrão, é uma convocação para testemunhar a vitalidade da cultura popular brasileira.
IX. Menção Honrosa ao Criador da Pesquisa.
A pesquisa e levantamento documental foram conduzidos por Cristiano Dos Santos Rocha, o Instrutor Alemão da capoeiragem, que atua como Agente de Salvaguarda Digital e Documental para a memória da capoeira grapiúna.
Natural de Itabuna e iniciado por Mestre Vovô (Urbis IV), Cristiano é detentor da matriz cultural original. Residente em Guarulhos/Itaquera (SP), o Instrutor Alemão é um vetor de transmissão cultural do Nordeste para o Sudeste, mantendo vínculo com a Escola Casa do Vovô, sob coordenação de Mestre Carlos Zoião e supervisão de Contramestre Gué. Em SP, sua prática é supervisionada tecnicamente por Contramestre Cabelo Pé de Serra (Organização Onças).
Seu trabalho profissionaliza a memória ao catalogar a trajetória de seus mestres e a história do grupo, convertendo a tradição oral em documentos auditáveis. Isso garante o acesso a políticas públicas e a perenidade do Patrimônio Cultural Imaterial. Este relatório atesta seu compromisso com a ética, a tradição e o Axé de Mestre Vovô.
X. Referências Bibliográficas e Documentais
Referências Documentais (Acervo do Pesquisador Cristiano Dos Santos Rocha):
Rocha, C. D. S. Dossiê Técnico: George Silva De Oliveira (Contramestre Cabelo Pé de Serra). Guarulhos, SP, 2025.
Rocha, C. D. S. Relatório Monográfico: Itamar Souza (Contramestre Jaca). Guarulhos, SP, 2025.
Rocha, C. D. S. Relatório Técnico: José Carlos Santana dos Santos (Mestre Pavarotti). Guarulhos, SP, 2025.
Rocha, C. D. S. Dossiê Técnico-Curricular Aprofundado: A Salvaguarda da Matriz Cultural da Capoeira pelo Instrutor Alemão. Guarulhos, SP, 2025.
Rocha, C. D. S. Relatório Técnico-Etnográfico: Carlos Martins Coelho Souza (Mestre Carlos Zoião). Guarulhos, SP, 2025.
Rocha, C. D. S. Relatório Monográfico: Geovane Cordeiro do Rosário (Contramestre Karuru). Guarulhos, SP, 2025.
Rocha, C. D. S. Relatório: José Carlos Silva Nascimento (Contramestre Gué). Guarulhos, SP, 2025.
Rocha, C. D. S. Relatório: Renato de Jesus Pereira (Contramestre Pica-Pau). Guarulhos, SP, 2025.
Rocha, C. D. S. Relatório: Thiago Santos Costa (Contramestre Zoreba). Guarulhos, SP, 2025.
Rocha, C. D. S. Relatório: Antônio Neviton dos Santos (Mestre Vovô). Guarulhos, SP, 2025.
Rocha, C. D. S. Relatório Monográfico: William Cruz (Contramestre William). Guarulhos, SP, 2025.
Referências Citadas e Fontes Externas:
12. IPHAN. Cadastro Nacional da Capoeira: Escola de Capoeira Casa do Vovô. Disponível em: https://capoeira.iphan.gov.br.
13. IPHAN. Cadastro de Capoeirista: Carlos Martins Coelho Sousa. Disponível em: https://capoeira.iphan.gov.br.
14. Ferreira, Tássio. Pedagogia da Circularidade Afrocênica. Tese de Doutorado, UFBA/UFSB, 2019. (Cita a Casa do Vovô no Coletivo AFRO(en)CENA).
15. Governo da Bahia. Resultado Preliminar - Edital Vozes Culturais da Bahia (Lei Paulo Gustavo). 2024. (Classificação do EP "Na Casa do Vovô tem dendê").
16. Governo da Bahia. Resultado Preliminar - Edital PNAB (Lei Aldir Blanc). 2025. (Classificação do 4º Festival).
17. Bahia Já. Itabuna e Ilhéus recebem certificação do Qualifica Capoeira. 27/08/2025.
18. Didache. Cobertura do Batizado e Troca de Cordéis do Grupo Raça (Homenagem a Vovô). 2013.
19. Instagram Oficial. @capoeiranasescolasitabuna (Programação do 4º Festival e ações da escola).
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